quinta-feira, outubro 23, 2014

Tempo

Pesadas correntes,  a ilusão das tuas horas
fraude cruel, que em mim arrasto
breve o passo, quase escasso
E o peso do grilhão, curva-me as costas.

Crente, fiz-me peregrina no lento espreguiçar 
destes teus dias.
E é o frio do metal que hoje me corta, 
o rasgar de cada sonho na pele morta...

Eram ávidos os sonhos, fíctas as esperanças , vãs as metas?

Tempo, não te acredito.
Sobras em mim, aviltado, aflito,
deixo nos teus braços, o tumulto dos abraços
que em mim enlaças.

Docemente...despedaço a corrente, erguem-se as costas.
Não o mereço. Mas liberdade é o único elo que te peço.
Fazer um novo palco com esse resto.
Escrever à sombra baixa das cortinas, uma história,
sem as plateias constringentes de uma vida,
Sem o devaneio burlesco da memória.

Os fantasmas que esqueci nessa saída,
que os carregues, paciente, ao deixares a minha porta.
Porque o corpo seca, em cada despedida
as cicatrizes do delírio de uma rota.

terça-feira, agosto 05, 2014

O voo da Garça



V. fora o primeiro amor de I. E os seguintes que buscara nas outras mulheres, que só o conduziam de volta a ela.

Recordava-se ainda de quando a conheceu, menina pequena e delicada. Gravara em si todos os detalhes. Era um dia vulgar de Outubro, as nuvens agitavam-se de um tom cinzento, pincelando o céu de uma cor monótona e pardacenta, numa melancolia infeliz. Como aquela que ele sentia nela.
Ela tremia de medo e de frio. Os olhos castanhos amendoados e grandes, semelhantes a dois sois, brilhavam timidamente. O cabelo vermelho encaracolado, escondia-se numa touca escarlate, e uma madeixa pendia, em desalinho e encharcada, nos seus ombros.

Lembra-se de ter pensado, mesmo sem falar, mesmo antes de o saber dizer. “É tão feia”, acabou por pronunciar. A menina largou a mão de O. e poisou os olhos nos seus, oferecendo-lhe o seu maior sorriso, para sempre deles. Ensinou-a a falar a sua língua, para ela um idioma confuso e estranho, e ela contava-lhe do seu país onde a terra era cinzenta e os bairros tinham nomes de santos.

Com ela descobrira novas palavras para o mundo, correndo pelo porto de Vyborg, que deixavam cobertos de pegadas, sempre a par e par. E, ao fim da tarde, viam o pôr-do-sol atrás do mar imenso que ela tanto temia, quando viera de barco. Percorriam juntos o globo terrestre, ouvido vezes sem conta a sua história interminável da sua viagem pelo mar.

Com ela aprendera a rezar. Hoje, mesmo que quisesse, nenhuma dessas rezas conseguia evocar, porque a memória silenciava-lhe a voz baça na garganta. Fizeram-se cúmplices, viajantes dos mesmos lugares e companheiros dos mesmos dias. Com ela aprendera a partilhar. Primeiro a sua cama, grande demais para o conter sozinho, e pequena demais para os aconchegar. Depois os seus segredos que compartilhavam numa descoberta curiosa e constante, iniciada lado a lado, nos mesmos bancos de Escola.

E quando o amor surgiu sem razão, nos corações unos e indivisíveis dos dois, com ela experimentou pela primeira vez o gosto da saliva misturada na sua. Percorria a sua pele onde escrevia com os lábios os nomes mais ternos, inventados juntos, numa promessa conjunta de jamais se deixarem. Mas a vida tinha que os testar.

A primeira vez fora ele a deixá-la, perdida e submersa em dúvida, engolindo as lágrimas que o seu orgulho forçava travar. Mas I. voltara. E encontraram-se. Dois seres que se lêem e adivinham um no outro, em ânsia, numa angústia irreparável que não se pode serenar.

Da segunda, fora ela quem lhe virara costas, sem remordimentos ou explicações, selando o seu destino com a batida compassada de uma porta de café. Porém, ele teimava em encontrá-la. Suspenso num amor raro, curto e talvez por isso forte demais para ser contido. Era sempre aquele amor intenso, embebido nele que o guiava até ela, numa sede incontrolável de a buscar.

E apesar de saber que o caminho com V. o conduziria sempre ao mesmo beco desabitado e frio, a sua alma era dela. Estava entranhada nele, como carne da sua carne que lhe ardia como um vício, perdidos um no outro, sem forma de voltar.

Para eles, contudo, não haveria próxima vez. E I. assustou-se. Porque ela era a sua rota. Sem ela, apenas o vazio dos dias remoídos numa reminiscência intemporal. Sem ela, apenas um espírito torturado numa carência íntima, tumoral.

E algo em si se quebrou. Perdeu a conta das horas, dos dias que se somavam sempre iguais, perdeu o norte da bússola que enterrara em si; numa dor interna inexplicável fixa nele, que o seguiria até o fim dos seus dias, quando ela, o seu chão eterno, se extinguiu consigo, diluída no seu último sopro de vida




Saga, uma história por contar...

terça-feira, julho 29, 2014

Metade

Era fácil.

Deixava-se arrastar
em lentos  passos pesarosos.
Toda a segurança morava  ali,
naquele pequeno inferno sedutor.
E soluçava errante, cabisbaixa,
submersa, numa dança.
Dava um passo, depois outro.
Tanto tempo passara quieta,
contemplando a vida que passava
pela estrada.
Já se esquecera, do impulso,
que a impelia a caminhar.

Era tão fácil

curvar os sonhos num soluço,
parar no curso
e passear o pesar,
alastrado, vagaroso, com cuidado,
tacteando, um por um,
os  seus recantos
embebendo-os, complacente
numa lenta necrosão.

Era simples.

Num suspiro, dar-se por vencida,
num murmúrio, entregar a vida,
a um doce desespero.
Apenas um  corpo,
a sós, com a sua dor, que o corroía,
cada vez mais, dia pós dia, com esmero.

Era tão seu esse mundo,
onde, sozinha, se encolhia,
para que coubesse toda nele,
serena, indolente.
Que agora, percebia,
pisava os estilhaços
de si mesma, amputados, pelo chão.

Era o seu corpo que morria,
sem se debater...
Sorriu, ao sentir-se morrer
Outra metade nascia
uma que não lhe pertencia,
que não lhe cabia no mundo
e que não ía deixar perder...

segunda-feira, julho 28, 2014

A ti..

Tudo foi dito, meu amor, nesse compasso.
E no desconcertante, exílio do silêncio,
ergui um espaço escasso, onde repouso,
confessada, e em suspenso.

No encontro dos meus pés com o caminho sempre me debato,
rebate etéreo e febril, com o teu tacto.
E é ausência de mim isto que sinto, no contacto
sem dizer.

Queria tanto que me arrependesses.
Que me trouxesses tempestades aos olhos,
e devolvesses os sismos ao meu chão.
E pudesse o amor revirar as entranhas.
Queria arrancar-te a vida num só beijo e
devolver-ta, maculada nos meus fogos e paixões.
Guardo em mim uma vida que transborda,
leal, nos meus lamentos.
E queria que me arrancasses os tormentos,
dessa vida, que em silêncio te ofereci.
E pudesse o amor amar mais, na despedida
amar-te-ia mais uma vida, um pouco mais
só para te ver partir...

A ti

Que agora foges do silêncio que te frustra,
Que me prometeste dar à vida infernos e vulcões.
A mim, que nada mais criei que as ilusões
Arromba-me a porta, derruba-me os muros
devolve-me os vulcões

Ouves-me?

Faz da minha quietude um vício e a tua rota
e quando, em rendição te vir, cansado, regressar,
nos passos, que em contramão já percorreste,
Peço-te
Vamos dançar o tango. Esquecer a luta,
que inevitavelmente, perscruta
todas as danças que a vida tem...

terça-feira, junho 26, 2012

Transgressão




Dá-me um segundo.

Não sabes que caí, mais uma vez, neste meu chão.
Fiz dele o meu percurso, traçado nas minhas derrotas, anulado nas minhas lágrimas, de novo alçado nos meus sonhos, em cada sopro de uma ilusão.

Mas, não sabes que fui eu.

Que me desacerto, engano e decomponho nessas rotas, e que, em medo, me escondo, tentando fugir-me, escapar-me, em exasperação.

E estendes-me a mão...

E é sempre minha a culpa, de fazer tão sinuosas estas vias, de lançar-me tortuosa a tudo o que somos, errante entre tudo o que perdemos…

Dá-me um segundo. Só mais este. Não afastes a tua mão.

Enquanto a alma procura, uma vez mais, destruir a inflamação. Perdi, mais uma vez, a minha história, nos interlúdios desta culpa. Perdi-lhe o tom, o trecho, o enredo, a impressão. 
Sabes, gostava de poder contar-te a minha história, sem o muro de palavras que erigi. Com um sopro de ânimo desfazê-lo, taciturno, quedo comigo, neste chão.

Não me faças perder também, num segundo, a tua mão.

E são tão vãos estes sonhos, que se abatem, tão estéreis, quanto o frustre das derrotas, tão fúteis como o enlaço das vitórias…

Dá-me só mais um segundo. Que eu quero erguer-me do meu chão. 

E por um segundo, poder deixá-lo impune pelas rotas, erguer-me das derrotas, anular-me da culpa, desta minha vida em transgressão. 

E o teu segundo é o muito que te peço Nesses fragmentos de pó que despedaço pelas rotas.

E pode o segundo ser maior que a vida. Quando nele se conclua tudo o que somos, tudo o que fomos, tudo o que perdemos… 
e te cole de novo a vida ao coração.

terça-feira, agosto 23, 2011

Princípio

“Senta-te. A história é longa. (...) poderás saber como perceber melhor o tempo...”
Assim falou ternamente a voz (...)


Parou. Parecia que nada mais resistia a não ser o momento. Nada mexia, e no sideral vão do meu peito só entendia o coração pulsar. Dali a poucas horas também ele deixaria de viver. Contudo, a Terra continuaria a mexer, imperceptivelmente, num novo dia. Do seu centro, continuaria a cuspir fogo, inalterável, constante. Alheia à minha presença ou a qualquer outra existência que habitasse as suas entranhas, perduraria…

“Deixa-te estar.” - Continuou – “Não há pressa, o tempo todo molda-se ao nosso dispor”.

Balançou suavemente o corpo esguio até encontrar o beiral. Sentou-se, procurando definir a trajectória que os meus olhos encetavam. Pareciam perdidos na vasta imensidão minúscula que se delineava do alto do telhado. Aproximou-se mais e sentou-se ao meu lado, poisando calmamente as mãos grandes e elegantes nos joelhos, retomando a fala.

- “Quantas pessoas achas que já passaram por aqui?”

Os meus olhos voltaram a si e responderam-lhe, cáusticos e incisivos, num mutismo agitado que já não davam valor a nenhum tipo de vida.
A voz aflita, tão emocionada quanto confusa, alcançava-me, disseminada nas explosões.

- Desculpa! Perdoa-me ter-te abandonado,

Comecei por fim a entender a razão que me levava ao cimo do telhado e a história que acabara irremediavelmente por levar-me àquele fim.

- …e perdoa-me o que te estou a pedir…

Desinteressadamente, quase como se adivinhasse a resposta, levantou as mãos para o nada, balançando-as ao ar, por cima dos pequenos pontos vivos que se desenhavam abaixo, sob o raiar de um novo dia.
“Antes de concluíres o que vais fazer, antes de te alçares deste beiral e te atirares para o vazio que te espera lá em baixo, quero que te perguntes:
- Quantas pessoas seriam precisas para fazer tempo?”

Inclinei-me, preparando-me para saltar. Sentia o coração pulsar-me na garganta. Dali a poucas horas também ele deixaria de viver. Contudo, que assinatura teria eu deixado nos caminhos por onde passei? Sempre de fugida, sempre furtiva, sempre brusca demais, sempre com medo…sempre…
E aqui começa, ou acaba, a minha história. Sei que, ali, deitada naquele chão, coberta de destroços, podia adivinhar uma ténue pulsação. Não a minha, que cessava, mas a da Terra, feliz e em liberdade. Se me aproximasse, podia ouvi-la respirar.

 In "Saga, os Dias da Ira". 
[quem quiser mais, é só pedir :P]

quarta-feira, julho 06, 2011

Conclusão

Adeus, apertado sufoco deste eterno coração.
Escrevo-te outra história. E nos traços do que escrevo, dou-te novas linhas. Retiro-te da reclusão.
Rematei-te com as formas que me deste. Inacabado, mutilado, imperfeito. Livrei-te de mim, da minha infecciosa lentidão.
Fiz-te em linhas férreas, para que domines os cursos do meu sangue. Porque os ecos dos meus gritos não te alcançam. Dou-te um propósito. Outra intenção.
Porque a solidão é uma moléstia que gangrena. E a inércia, uma consentida solidão. A independência é a nova história que te cedo.
Fomos uma só cadência. Trinaste os compassos neste peito. Bateste com ânsias, com sede de muito, em sofreguidão.
Adeus, velho coração. Completo a narração.
Quero saber-te sepultado noutro peito, imerso noutra mão. Fora de mim, possas bater, mais devagar.