V. fora o primeiro amor de I. E os seguintes que buscara nas outras mulheres, que só o conduziam de volta a ela.
Recordava-se ainda de quando a conheceu, menina pequena e delicada. Gravara em si todos os detalhes. Era um dia vulgar de Outubro, as nuvens agitavam-se de um tom cinzento, pincelando o céu de uma cor monótona e pardacenta, numa melancolia infeliz. Como aquela que ele sentia nela.
Ela tremia de medo e de frio. Os olhos castanhos amendoados e grandes, semelhantes a dois sois, brilhavam timidamente. O cabelo vermelho encaracolado, escondia-se numa touca escarlate, e uma madeixa pendia, em desalinho e encharcada, nos seus ombros.
Lembra-se de ter pensado, mesmo sem falar, mesmo antes de o saber dizer. “É tão feia”, acabou por pronunciar. A menina largou a mão de O. e poisou os olhos nos seus, oferecendo-lhe o seu maior sorriso, para sempre deles. Ensinou-a a falar a sua língua, para ela um idioma confuso e estranho, e ela contava-lhe do seu país onde a terra era cinzenta e os bairros tinham nomes de santos.
Com ela descobrira novas palavras para o mundo, correndo pelo porto de Vyborg, que deixavam cobertos de pegadas, sempre a par e par. E, ao fim da tarde, viam o pôr-do-sol atrás do mar imenso que ela tanto temia, quando viera de barco. Percorriam juntos o globo terrestre, ouvido vezes sem conta a sua história interminável da sua viagem pelo mar.
Com ela aprendera a rezar. Hoje, mesmo que quisesse, nenhuma dessas rezas conseguia evocar, porque a memória silenciava-lhe a voz baça na garganta. Fizeram-se cúmplices, viajantes dos mesmos lugares e companheiros dos mesmos dias. Com ela aprendera a partilhar. Primeiro a sua cama, grande demais para o conter sozinho, e pequena demais para os aconchegar. Depois os seus segredos que compartilhavam numa descoberta curiosa e constante, iniciada lado a lado, nos mesmos bancos de Escola.
E quando o amor surgiu sem razão, nos corações unos e indivisíveis dos dois, com ela experimentou pela primeira vez o gosto da saliva misturada na sua. Percorria a sua pele onde escrevia com os lábios os nomes mais ternos, inventados juntos, numa promessa conjunta de jamais se deixarem. Mas a vida tinha que os testar.
A primeira vez fora ele a deixá-la, perdida e submersa em dúvida, engolindo as lágrimas que o seu orgulho forçava travar. Mas I. voltara. E encontraram-se. Dois seres que se lêem e adivinham um no outro, em ânsia, numa angústia irreparável que não se pode serenar.
Da segunda, fora ela quem lhe virara costas, sem remordimentos ou explicações, selando o seu destino com a batida compassada de uma porta de café. Porém, ele teimava em encontrá-la. Suspenso num amor raro, curto e talvez por isso forte demais para ser contido. Era sempre aquele amor intenso, embebido nele que o guiava até ela, numa sede incontrolável de a buscar.
E apesar de saber que o caminho com V. o conduziria sempre ao mesmo beco desabitado e frio, a sua alma era dela. Estava entranhada nele, como carne da sua carne que lhe ardia como um vício, perdidos um no outro, sem forma de voltar.
Para eles, contudo, não haveria próxima vez. E I. assustou-se. Porque ela era a sua rota. Sem ela, apenas o vazio dos dias remoídos numa reminiscência intemporal. Sem ela, apenas um espírito torturado numa carência íntima, tumoral.
E algo em si se quebrou. Perdeu a conta das horas, dos dias que se somavam sempre iguais, perdeu o norte da bússola que enterrara em si; numa dor interna inexplicável fixa nele, que o seguiria até o fim dos seus dias, quando ela, o seu chão eterno, se extinguiu consigo, diluída no seu último sopro de vida
Saga, uma história por contar...